Todavia, não se pode falar em perda de bem de que não se tinha titularidade. Com efeito, se o imposto não era devido, e entrou inapropriadamente na burra pública, sua devolução ser computada como perda é uma falácia.
Mesmo estando às escâncaras o fato de que eventual modulação irá, por mais paradoxal que pareça, criar insegurança jurídica, em julho passado Cármen Lúcia liberou para julgamento a questão da modulação dos efeitos, que agora consta da pauta do dia 1º de abril.
A data, que marca o Dia da Mentira, não poderia ser mais apropriada. É o que pensam os contribuintes que recolheram o imposto considerado pelo próprio STF como inconstitucional.
- Histórico
1998
O primeiro processo pelo qual o STF se debruçou sobre o tema data de 1998 (RE 240.785). Trata-se de recurso da empresa Auto Americano Distribuidor de Peças contra uma decisão do TRF da 3ª região, que julgou ser constitucional a inclusão do ICMS na base de cálculo da Cofins. Nas vicissitudes de seu andamento, foi levado ao pleno em 2006.
2006
Sete ministros se pronunciam sobre o tema. Seis pela inconstitucionalidade da cobrança: Marco Aurélio – relator, Cármen Lúcia, Lewandowski, Ayres Britto, Cezar Peluso e Sepúlveda Pertence. E apenas um, Eros Grau, pela constitucionalidade. Mas o julgamento foi suspenso por pedido de vista de Gilmar.
2007
A essa altura, como se viu, a maioria já havia decidido a questão. Qualquer medida que o governo quisesse tomar, era entrar em campo com um 6 a 1. No entanto, um dos que havia votado contra os interesses do governo, ministro Sepúlveda Pertence, aposenta-se antes do esperado (em 15 de agosto). Alguns dias depois (5 de setembro), o ministro Menezes Direito toma posse.
O que faz o governo? Entra, em 10 de outubro, com uma nova ação: a ADC 18. O objeto? O mesmo daquele primeiro RE que estava com pedido de vista. Só que, agora, há outro juiz apitando o jogo. A ação, coincidentemente, tem como relator justamente o novo ministro Menezes Direito.
2008
Em 25/4/2008, os ministros decidem pela existência de repercussão geral em um novo RE (574.706) com o mesmo pedido, de autoria de uma empresa de exportação e indústria de óleos do Paraná, relatado pela ministra Cármen Lúcia.
Em 15/5/08, enfim, o STF colocou em pauta, de uma vez, o primeiro RE e a ADC. Na ocasião os ministros decidiram, por maioria, em questão de ordem, que deveriam primeiro julgar a ADC, sob o argumento de que seus efeitos seriam mais amplos (controle concentrado), e abarcariam o RE (controle difuso).
A situação faria com que a discussão tivesse que começar do zero. Quer dizer, em evidente ofensa à lógica jurídica, um RE praticamente julgado é “pausado”, e os ministros passam a se debruçar sobre outro processo. Mas foi isso mesmo que fez o STF, não sem incisivos protestos do ministro Marco Aurélio – que acabou por pedir vista na ADC. A Corte, todavia, manteve a precedência do controle concentrado, não julgando o RE até solução da ADC.
Em agosto de 2008, o plenário decide deferir liminar na ADC 18, suspendendo todos os processos em tramitação na Justiça que discutissem a inclusão do ICMS na base de cálculo da Cofins, até que fosse julgado o mérito da ação proposta pelo presidente da República.
“A suspensão desses processos todos é uma vitória da União”, comemorou o então advogado-Geral da União, Dias Toffoli. A comemoração se deu porque, segundo informações da Secretaria da Receita Federal, divulgadas pelo próprio STF, os tributos recolhidos que estavam sendo questionados por estes processos somavam cerca de R$ 80 bilhões. À época, o AGU revelou que eventual decisão negativa na análise da ADC poderia levar a uma perda anual de arrecadação de R$ 12 bilhões.
2014
A solução parecia chegar finalmente em 2014, quando, em agosto, o relator do primeiro RE (240.785), ministro Marco Aurélio, pediu à presidência a continuidade do feito, destacando que já havia maioria formada.
“Urge proceder à entrega da prestação jurisdicional às partes.”
O pedido se deu após a empresa recorrente apresentar questão de ordem requerendo a sequência do julgamento do RE, em homenagem ao princípio da segurança jurídica e da duração razoável do processo.
O pedido foi atendido e, em 8 de outubro, os ministros decidiram naquele recurso, por maioria, que o ICMS não compõe a base de cálculo da Cofins. A decisão, porém, beneficiaria apenas e tão somente a empresa envolvida no recurso, uma vez que não possuia efeito erga omnes. Ou seja, decidido, mas não decidido.
Votaram naquela oportunidade os ministros Celso de Mello, que acompanhou o entendimento da maioria no sentido de que o ICMS não compõe a base de cálculo da Cofins, e o ministro Gilmar Mendes, com a divergência, sob o entendimento de que o ICMS compõe o preço do produto, e por essa razão deve integrar a chamada “receita bruta”. Na ocasião, o ministro ressaltou preocupação com possível “ruptura do sistema tributário”, uma vez que o esvaziamento da base de cálculo da Cofins resultaria em “expressivas perdas”.
A ministra Rosa não participou da votação, porque não havia participado também dos debates. Da mesma forma, não votaram Barroso, Teori, Fux e Toffoli, porque ocupavam cadeiras de ministros aposentados que já haviam se pronunciado no debate daquele específico feito.
Quer dizer, decidiu-se, mas ainda era desconhecido o posicionamento do novo colegiado. O entendimento ainda poderia ser mudado no julgamento do RE 574.706, de relatoria de Cármen Lúcia, que teve repercussão geral reconhecida, ou mesmo da ADC.
2017
O segundo recurso que debatia o ICMS na base de cálculo, que como já dito era de relatoria de Cármen Lúcia, foi finalmente julgado em março de 2017, quando os ministros decidiram (novamente) que o ICMS não compõe base de cálculo do PIS e da Cofins. Por 6 votos (Cármen, Rosa, Fux, Lewandowski, Marco Aurélio e Celso de Mello) a 4 (Fachin, Barroso, Toffoli e Gilmar), foi fixada tese para fins de repercussão geral.
A questão da modulação, por sua vez, não foi dirimida, permanecendo a situação de insegurança jurídica. Cármen disse que não constava no processo nenhum pleito nesse sentido. Sem requerimento nos autos, nada de votar modulação, disse a ministra corretamente.
Em outubro de 2017, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional opôs embargos de declaração. Na petição, inovou requerendo a modulação dos efeitos, para que a decisão passe a valer após o julgamento dos embargos, destacando o argumento ad terrorem do impacto financeiro e orçamentário, bem como dificuldades operacionais para a aplicação retroativa do entendimento.
A ADC, naquele momento, não estava liberada para julgamento, e por isso, não foi pautada conjuntamente.
2018
Ante o resultado de 2017, em setembro de 2018, em decisão monocrática, Celso de Mello julga prejudicada a ADC 18, em face da perda do objeto.
2019
Em junho de 2019, a PGR apresentou ao STF parecer favoravel à modulação. Nos embargos de declaração da União no RE 574.706, manifestou-se pelo parcial provimento, “de modo que o decidido neste paradigma da repercussão geral tenha eficácia pro futuro“.
“Os embargos declaratórios podem e devem ser acolhidos para que se proceda à modulação dos efeitos do julgado. O acórdão traz em si impacto e abrangência que impõem seja sua eficácia lançada pro futuro, com efeitos ex nunc. (…) A tese fixada em repercussão geral – com eficácia vinculante e efeitos ultra partes – produz importante modificação no sistema tributário brasileiro, alcança um grande número de transações fiscais e pode acarretar grave impacto nas contas públicas.”
À época, a advogada especialista em Direito Tributário Daniella Galvão (Cesnik, Quintino e Salinas Advogados) explicou, em entrevista ao Migalhas, que, de acordo com a lei de diretrizes orçamentárias de 2020, o risco estimado para o caso de perda da União considerando cinco anos de cálculo é de R$ 229 bilhões. No entanto, considera que o argumento de crise econômica, financeira e fiscal é “meramente retórico” e não reflete a atuação consistente do governo na condução da execução de seu orçamento e de seus gastos. “Uma decisão ex nunc será injusta com os contribuintes que arcaram indevidamente com este ônus e contrária à segurança jurídica.”
No mesmo sentido opinou o advogado tributarista Luiz Carlos Americo dos Reis Neto (Martins Ogawa, Lazzerotti & Sobral Advogados), para quem a modulação dos efeitos não cabe no caso em questão. “Será uma grande oportunidade para a Corte reafirmar sua jurisprudência no sentido de que a simples alegação de perda de arrecadação não é suficiente para demonstrar o excepcional interesse social inerente à modulação.”
O processo chegou a constar da pauta de dezembro passado, mas foi retirado.
2020
A previsão, agora, é que seja julgado em 1º de abril.
Considerando a efeméride do dia, a pergunta que fica é: deve o contribuinte ter esperança?
Fonte: Migalhas